domingo, 21 de dezembro de 2008

Análise de "O Homem de Aran" de Robert Flaherty (EUA, 1934)

O homem versus a natureza, tema recorrente de Flaherty, ganha dimensões épicas em O Homem de Aran. Personagens com suas jornadas heróicas são apresentados e antagonizados por um ambiente natural grandiloqüente que ora seduz, ora ameaça, ora destrói. O filme parece utilizar roteiro com plot points típicos da narrativa ficcional e ainda é embalado por uma trilha sonora com música, ruídos de ambientação e tudo que sugere um distanciamento do registro documental. Ainda assim, não restam dúvidas de que estamos diante de um filme documentário. Naquela época não havia como captar e sincronizar o som diretamente e o trabalho de Flaherty contorna esse obstáculo e outros quase como uma metáfora do próprio tema de superação do filme. Se o ano não fosse 1934, poder-se-ia dizer ainda que Flaherty incorpora em sua realização as duas tradições que modelariam o gênero documentário a partir dos anos 1960: o cinema direto e o cinema verdade.

Flaherty antecipa premissas estéticas dessas duas vertentes nas escolhas que faz para capturar os modos de vida dos homens de Aran. O espectador não tem como descobrir o que é encenado e o que é “pura realidade”, tamanha a habilidade com que Flaherty articula o desenvolvimento da história. E essa dúvida atua mais a favor do que contra o filme. Longe de soar como falsificador ou fabricante de uma realidade, o enredo “leva a crer” que as coisas são do jeito que estão sendo representadas, ainda que lance mão de artifícios indutores de sentidos, mesmo que tipifique seus atores. O momento histórico da realização é marcado por inúmeras produções cinematográficas com a temática dos “lugares distantes”. Culturas alheias ao progresso e seus códigos sociais são objeto de estudos etnográficos em todas as partes do mundo. Nós os estudiosos, eles os diferentes. Essa é a questão de fundo presente no filme. O tempero ficcional ajuda seu realizador a conduzir a uma conclusão inequívoca sobre aquela sociedade em particular. Sua perspectiva está centralizada muito mais na idéia do “como vivem” aqueles pescadores, apreendendo seus traços identitários sem se preocupar ou julgar o “porquê” estão vivendo daquele jeito. Não esclarece o que anima aqueles habitantes e qual a justificativa para uma vida de permanente confronto com as forças da natureza.

Pode-se identificar uma estrutura aristotélica em 3 atos no filme. O primeiro ato apresenta um homem integrado ao seu habitat. Um menino diverte-se com um crustáceo capturado por ele mesmo com uma alegria tal qual a de uma criança da cidade com seu brinquedo movido à pilha. Estamos diante de uma natureza amiga, dócil. A trilha sentimentalista acompanha e produz uma continuidade com a seqüência seguinte, da mãe em seu lar balançando o berço do bebê. Momento mágico do filme em que Flaherty não faz cerimônia ao empregar o recurso da montagem clássica para produzir rimas visuais, editando a galinha chocando, a galinha cuidando de seus pintinhos enquanto a mãe zelosa e confortadora nina seu bebê e aguarda ansiosamente pelo retorno do menino mais velho.

O segundo ato começa a se anunciar quando o céu se torna ameaçador. Os pescadores estão retornando para casa não sem enfrentar a rejeição do mar. A manipulação da montagem favorece a intensificação dramática da seqüência. É tudo ou nada. Alternam-se tensão-alívio com a edição rápida “vertoviana” sugerindo uma agilidade e superioridade dos pescadores em relação às forças marinhas. Eles vencem. A mulher sai em ajuda aos pescadores que tentam recuperar a rede que ficou na água. A fúria do mar contra as falésias não impede o êxito da ação. Trilha sublinha o triunfo. A natureza mostra sua força, mas o homem a domina.

Um movimento circular do roteiro produz o efeito de previsibilidade daquela vida, o cultivo, a pesca, a integração de todos os membros da comunidade alinhados com as atividades de subsistência. Até o menino tem seu dispositivo de pesca e a ambição de fazer o trabalho dos grandes. A trilha em sincronia com as imagens cria a sensação de realismo com ajuda de sons específicos e planos longos. A citação a Vertov volta na ação do pescador com a marreta em sincronia com a música, imprimindo e destacando o ritmo do trabalho e emprestando uma certa euforia ao filme.

A idéia de um mundo perdido no tempo e no espaço harmoniza com a idéia de um homem natural, ambos em equilíbrio. Apesar de todas as adversidades, aquele povo vive feliz, em família, produzindo. O homem de Aran é por essência um homem coletivo segunda a perspectiva do documentário. As relações sanguíneas, de poder ou de amizade são sonegadas. A aproximação desse homem soa como uma curiosidade que remete ao mundo das formigas e seus modos de produção e sobrevivência.

Os planos em close são raros e induzem ao sentimento de identificação e satisfação das pessoas com aquela vida. A mulher sorri como que aceitando seu duplo papel de “dona de casa” e lavradora. Mais um argumento ratifica a posição de Flaherty, posicionando o homem como dominador de uma natureza hostil e violenta, mas que pode ser domesticada. Não economiza recursos para demonstrar essa supremacia do homem ao capturar um tubarão para a retirada de seu óleo. A montagem paralela aqui demonstra bem a divisão de papéis. Cenas da mulher e da lamparina em casa validam a matança em nome da necessidade de aquecimento e iluminação dos seus predadores. O tubarão, apesar de fornecer o subsídio necessário, é caracterizado como monstro, mesmo estando ele em seu habitat natural. Uma inversão de valor que atesta o poder argumentativo do realizador.

O terceiro e culminante ato é o retorno dos pescadores enfrentando novamente a ira oceânica. Vencido, o mar cobra seu preço arremessando a embarcação contra os rochedos. O peso dramático é conseguido pelo close nos rostos desolados pela perda. O filme termina, mas a vida continua em Aran.



São Paulo, 10 de dezembro de 2007.

5 comentários:

  1. Muito, muito bom.
    Ótima iniciativa.
    Abraço,
    Karol

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  2. Ótima análise. Vou estudá-la. Esse filme marcou meu ingresso na escola de cinema nos anos de 1980. 30 anos depois revejo-o na TV e complemento a admiração com este artigo.

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  3. Ótimo texto. Você ensinou a compreender o cinema. Vi o filme na TV. Mesmo quase silencioso e com cenas longas, deixou-me hipnotizado. Obrigada!

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  4. Ainda não vi o filme por inteiro no Arte 1(03/2015),mas fiquei deslumbrada pelas imagens e fiz a pesquisa.Não podia imaginar que ele é tão antigo.Cinema de ótima qualidade.

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