domingo, 21 de dezembro de 2008

Audiovisual: produto ou obra?

Hoje.

A pergunta-título desse breve ensaio pretende se desdobrar em outras questões que são anteriores ao desenvolvimento de políticas públicas para universalizar o acesso aos bens culturais produzidos pelo setor audiovisual. Essas reflexões problematizam também o que se poderia chamar de universalização do gosto. Não é possível pensar numa coisa sem a outra. O acesso no sentido da disponibilização é mais controlável e é da conta de quem produz, distribui e exibe. Já o gosto é mais complexo e é da ponta que consome, isolando-se nesta abordagem a questão do poder aquisitivo. Recuando um pouco. O audiovisual é um bem cultural que se distingue dos demais por sua latitude. Pode ser considerado tanto um produto de consumo quanto um bem cultural. Também se particulariza por características de sua distribuição. Nenhum outro bem cultural consegue ser distribuído e “consumido” em meios tão diferentes quanto uma sala de cinema, uma TV, um celular, uma poltrona de avião e ainda se remunerar em cada uma dessas janelas. Uma distribuição que se articula em fases de lançamento meticulosamente calculadas para maximizar os ganhos ou minimizar os riscos de perdas de uma atividade que é o próprio risco. Neste ponto a questão da universalização do acesso dialoga com a outra, a do gosto. Avancemos em exemplos. Um documentário, por mais que seja uma produção de altíssima qualidade e obra de um documentarista reconhecido internacionalmente, terá seu público determinado por interesses bem específicos e, portanto, restrito. Sua distribuição ficará confinada a poucas salas. A universalização do acesso neste caso é de uma grandeza relativizada pelo interesse no gênero. Poder-se-ia classificar um filme desses segundo um critério objetivo? Como o nível de mobilização do espectador para fruir a obra, por exemplo? Ou pelo tipo de debate social/político que instiga? Mais ainda, pelo tipo de repercussão que alcança junto a festivais e mostras internacionais de prestígio? Difícil. Certo é que por mais que esse filme conseguisse uma distribuição massiva, seria exibido para “testemunhas”, como bem demonstra a performance de bilheterias de filmes de João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Eduardo Escorel etc. Sem precisar sair de casa para sustentar esse fato, é só constatar a baixa audiência de uma tv pública que exibe ótimas obras audiovisuais. Por outro lado, pensemos num “blockbuster” nacional. Um filme com uma história “fácil”, com astros, temática e apoio globais (de Rede Globo mesmo). Surge a questão: é uma obra de arte tanto quanto aquele documentário que experimentou novas abordagens estéticas e artísticas e ainda trouxe questões que inspiraram outras obras e debates? (caso concreto recente é o Notícias de Uma Guerra Particular de João Moreira Salles que influenciou Cidade de Deus de Ferando Meirelles e Tropa de Elite de José Padilha). Então poderíamos dizer que o gosto passa a ser regido por uma idéia ambígua (e ambivalente) de “claro” Versus “abstruso”, de “alto grau de entretenimento” Versus “alto grau de intelecção”. O quanto é possível, ou melhor efetivo, tratar todo o audiovisual com um mesmo conjunto de políticas públicas? Seria o caso de aprofundar essa questão e insistir numa divisão ainda que arriscada do que é produto e do que é obra? Poderia o Ministério da Cultura se encarregar de políticas para o que é obra e o Ministério da Indústria e do Comércio para o que é produto? De qual competência seria, por exemplo, a regulação da produção audiovisual das tvs? Uma Rede Globo, por exemplo. Hoje em dia produz conteúdos com dinheiro público que mais tarde serão exibidos em sua grade a custo quase zero. Claro, porque o conteúdo produzido pela Rede Globo sou eu quem pago cada vez que compro meus sucrilhos. A verba publicitária está embutida naquele desembolso que fiz, sai dali e vai para a Globo pagar a produção do seu conteúdo que vejo nos intervalos dos comerciais do sucrilhos que assisto. Quando ela passa a adquirir esse conteúdo pago por empresas que o viabilizaram por meio de renúncia fiscal, então estamos diante de uma política que é mais privada do que pública na medida que premia muito mais as empresas do que os contribuintes-consumidores. Então, o que propor diante dessa questão que pode ser considerada de fundo? O mundo é das corporações, e no Brasil não é diferente. Nesse ponto a equação está, em certa medida, bem resolvida para o audiovisual-produto. Aquele audiovisual que vai bem em todas as janelas porque está endereçado para um apreço mais horizontalizado. Pura diversão. Ali tem espaço para o “product placement”, patrocínios, promoções do tipo “C&A leva você ao cinema. A cada R$ 25, em produtos ganhe um ingresso”. Mesmo a Rede Globo se refestelando com o atual benefício que a lei lhe confere, a coisa tá indo. Tem dado abertura a produtores independentes e uma certa independência na escolha dos temas etc. Já o audiovisual-obra está desamparado. Esse sim precisa ser repensado, sobretudo no aspecto da distribuição. Façamos um exercício do absurdo. O que aconteceria se um filme como Vocação do Poder de Eduardo Escorel recebesse um aporte de mídia como um Se Eu Fosse Você e o mesmo número de cópias deste? Se o filme do Escorel fosse objeto de merchandising na novela das 8 e atração do Faustão? As salas de cinema encheriam nas primeiras sessões e as pessoas sairiam enfurecidas falando mal do filme e as cópias seriam retiradas do circuito? Ou o público usual do “produto” responderia positivamente à “obra” por influência da mídia como o fez com as obras de Rodin quando esteve no Brasil? Que pesquisa prévia poderia simular o poderoso efeito da mídia global sobre a atitude e comportamento do público? Num país com alto grau de analfabetização como o Brasil, discutir política cultural soa quase como um capricho elitista diante desse quadro mais sombrio que é o da educação. O que está sendo vendido de baciada ao lado da gôndola de azeite são filmes tão enlatados quanto. Parte disso é reflexo da baixa auto-estima do brasileiro em não se interessar por seu próprio produto, parte por esse produto não apresentar a qualidade esperada por esse consumidor e parte por falta da tal política que pense além da produção, mas que cubra a distribuição/comunicação. É quase inescapável recorrer à história do ovo e da galinha diante desse cenário.

Futuro

Mas vamos a uma idéia. A explosão do microcinema, ou cinema de bolso, provavelmente afetará todos as relações dessa cadeia produtiva. As operadoras de telefonia celular e os players da internet serão os protagonistas dessa revolução na forma de distribuir e fruir audiovisual que já foi deflagrada. A demanda por audiovisual aumentará e será medianamente servida pela oferta. O porquê do medianamente? A parte bem servida diz respeito ao fácil e barato acesso aos meios de produção do audiovisual. Sonys, Samsungs, Philips da vida estão produzindo equipamentos cada vez melhores e mais baratos. Mas há uma atividade crucial nessa engrenagem que não conseguirá acompanhar esse crescimento dos meios de produzir, distribuir e exibir. É a parte criativa, precisamente o argumento e o roteiro. A dramaturgia do audiovisual-cinema é substancialmente distinta da dramaturgia televisiva ou teatral, estas, ao contrário, estão superdesenvolvidas no Brasil. A banalização da imagem representada pela abundância da oferta parece produzir uma saturação e está criando um consumidor da imagem mais exigente, mais difícil de ser “capturado” em sua atenção, interesse e envolvimento. Essa é a parte que uma política pública deveria centrar o foco. Uma política de fomento ao surgimento de talentos de dramaturgia audiovisual, para começar. Basta caneta e papel. Hoje os talentos para desenvolvimento de argumentos e roteiros cinematográficos são escassos. Não acompanham nem de longe a oferta de talentos de direção, cinematografia e funções técnicas. A única escola de dramaturgia audiovisual é de novo viciada numa mesma chave ideológica e criativa: Rede Globo. É preciso desenvolver talentos que consigam articular essa sofisticada linguagem para tentar modelar um parque audiovisual com a cara e o jeito do Brasil. Com o pouco que temos já mostramos um valor internacional. Mas é preciso criar escala, começando pelo começo, pela nossa capacidade de contar histórias, sejam elas ficcionais ou documentais, experimentais, poéticas, ensaísticas ou o que for. É preciso pensar pequeno, miúdo, naquilo que é a semente de qualquer grande obra. Se como complemento às grandes leis de incentivo fossem desenvolvidas políticas públicas para estimular a criação e produção em pequenos formatos? Em vez de mega sucessos, micro sucessos que, por efeito viral (inteligência coletiva), poderiam se tornar mega sucessos num youtube. Por que não? Não seria a hora de recuar algumas casas e não ignorar essa revolução que nem silenciosa é? Uma política fragmentária por princípio. Atingiria o pequeno produtor, assim como na agricultura, no comércio, na indústria. Não seria esse o caminho para desenvolver nossos talentos? Se o cara se mostrar bom com pouco dinheiro, imagina com os recursos de gente grande? Em suma, uma política pública deveria trazer para a discussão não apenas soluções restritas a produções de grandes formatos. Deveria sim pensar em toda a diversidade do que já está aí e do que está por vir em tecnologia de produção, distribuição e exibição. O ponto crítico é o da criação dramatúrgica. Está não está nem sendo discutida. É como se já estivéssemos resolvidos com os restritos e fechados clubes que já dominam esse saber e fazer ou pior os clubes que estão criando coisas geniais, mas estão sem canal de escoamento. O cinema como arte pode e dever ir muito além da caixinha no supermercado, do lazer euforizante. Deve continuar sendo a arte que mais se aproxima do registro do sonho. Deve continuar contribuindo para gerar desconfortos, inquietações, provocações, inconformismos com o estado das coisas da vida contemporânea. O cinema, como expressão maior e mais complexa da categoria audiovisual precisa de uma política pública que o permita se desenvolver como tal, livre o mais que possível das ideologias corporativas e pragmáticas da sociedade do consumo. Precisa de apoio constante para ser independente no pensar o ser humano e toda a sua fragilidade. Por isso, quanto mais pessoas tiverem acesso ao instrumental teórico, conceitual, prático, técnico etc para a realização do audiovisual, mais pessoas teremos refletindo sobre a nossa humanidade ou nossa capacidade de sonhar, sejam os sonhos luminosos, sejam os mais atemorizantes. De qualquer modo, precisamos dos dois para nos lembrar de quem somos.


São Paulo, 10 de novembro de 2007.

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