domingo, 21 de dezembro de 2008

O Documentário e a Fé Pública

Começo minha jornada lembrando uma frase atribuída a Jean Rouch que diz mais ou menos assim: “vejo o cinema-verdade como cinema de mentiras; mentiras que dependem da arte de se contar mentiras. Se você é um bom contador de histórias, a mentira é mais verdadeira que a realidade, caso contrário, a verdade não valerá meia mentira”. Com isso vou direto à questão ética do cinema documentário sintetizada no título desse texto. Ao se criar o rótulo documentário para um cinema empenhado na representação do real ou de uma certa realidade, acabou-se por instigar discussões filosóficas sobre o que é o real, o que é a verdade, como o olhar do observador se relaciona com esses elementos, como o cinema lida com essas questões, seja ele ficcional ou documental. São discussões que têm suas inúmeras implicações técnicas e estéticas, mas todas elas subordinadas ao aspecto ético, crucial na discussão do filme como suposto documento. “Documento para ter valor tem que ter um monte de carimbo e assinatura”, diz o senso comum. O que essa frase nos diz senão o que nos diria Jean Rouch numa fictícia e livre adaptação: “um documento é tão crível quanto mais souber contar ou trazer uma boa história, a saber: os carimbos, as assinaturas, os rituais de cartório etc”. Quais são os “carimbos e assinaturas” que podem atestar o valor documental de um filme? São muitos e nenhum. Assim como os carimbos e assinaturas, a técnica e a estética servirão ao realizador para contar sua história, mas seu convencimento dependerá, assim como o documento, do receptor, de seu repertório, quadro mental de referências, do contexto de fruição da obra, da sua disposição em se posicionar criticamente diante do que vê, do momento histórico, de sua fé. Técnica e estética podem servir então para apresentar uma realidade, uma verdade ou para produzir “uma mentira mais verdadeira que a realidade”.

As questões implicadas nessa abordagem são inescapavelmente similares as discussões em torno do jornalismo da época. Cinema-verdade e cinema-direto vão encontrar convergências e paralelos com o jornalismo literário na medida em que a realidade passa a ser entendida como uma integração entre os modos de ver objetivo e subjetivo. Variações no grau de imersão do cineasta documentarista ou do jornalista literário com o universo que deseja retratar é que constituirão as nuanças de aproximação com o mesmo. Ambas as atividades vão dialogar entre si e com outras ciências humanas como antropologia, etnografia, história, sociologia etc, promovendo rupturas de linguagem e tornando as realizações mais sofisticadas técnica e esteticamente. Tais movimentos parecem surgir como uma resposta à tendência de dominação da televisão como meio de representação (ou falsificação) da realidade. Ambas tradições parecem querer desvelar as manipulações, omissões e outras formas de distorção da televisão e do próprio cinema, ao experimentar novas condutas na construção de seus discursos e obras. O ponto é que ao tentar fazer isso, se confrontam com dilemas parecidos, pois toda mediação é interventora, ainda que seja esta apenas o olhar.

Focalizando a atenção para as semelhanças entre os cinemas direto e verdade, podemos nos perguntar se a inspiração dessas escolas vem de um contexto competitivo com a linguagem televisiva e com o cinema ficcional (no sentido de ocupar seu espaço no universo das representações audiovisuais) ou o se é decorrente das novas possibilidades técnicas proporcionadas por câmeras mais leves e o som direto e sincronizado. Ou ambos as coisas.

As similaridades entre direto e verdade não vão, ao meu ver, muito além do fato de ambos disporem das mesmas possibilidades técnicas. Sim, é fato que ambos buscam a representação do real ou um acesso à verdade, mas cada um atribuindo a seu jeito o que é o real, o que é a verdade.

O cinema direto dirá que a intervenção do realizador deve ser quase invisível ou como “uma mosca na parede”. O cinema direto crê na possibilidade de uma isenção no processo de captura do objeto fílmico, sem encenação, trilha em off, entrevistas. Utiliza planos longos, faz uso do zoom como procedimento de chegar perto “de longe”. Na montagem busca o corte mais orgânico possível, capaz de espelhar o tempo natural da realidade retratada. Tudo isso são apenas regras para serem transgredidas em nome de algo mais do que mostrar a verdade. Quer acima de tudo ser uma forma de expressão, encontrar a sua verdade posicionando-se como um observador distante de seus objetos, mas ciente de que sua visão funciona como um filtro, que está construindo seu próprio sentido à realidade que lhe é dada, seja nas escolhas de captação ou de montagem. Numa frase seria “a minha verdade sobre a verdade do outro”. Ou como explicar a cena de Caixeiro Viajante em que o personagem vivencia uma lembrança e o filme recorre a um flashback? O estatuto do cinema direto não fala em acessar as lembranças dos personagens, se não me falha a memória.

Já o cinema verdade parece paradoxalmente menos engajado na busca de uma verdade em sua proposta de realização. Assume compartilhar a realização com seus personagens assim como fazer de seu realizador até um personagem. Abre-se para encenações e opera sem o artifício do zoom. O sentido que tudo isso produz é de uma verdade não do que está sendo representado mas do como está se dando tal tentativa de construção. Numa frase poderia ser “a nossa verdade enquanto filme”.

A questão ética que se coloca não é muito diferente quando vista na perspectiva de outras formas de representação como a literatura ou a fotografia. Tratar ou retratar a vida do outro é sempre complicado desde sempre até hoje, está aí o caso da biografia não autorizada de Roberto Carlos para confirmar. O que o cinema tem de específico é seu poder de alcance, seja nos meios virais, seja na suas forma clássica, a telona. Isso sem falar na telinha, ainda mais poderosa em termos de disseminação e poder de estrago, pois o próprio meio parece contaminar o sentido do que veicula com parte de seu caráter sensacionalista, superficial e parcial.

Afinal, quem é mais ético? O cinema-verdade ou o cinema-direto? A questão anterior é o que é ser ético em arte, já que cinema documentário é arte? A mim parece que quanto mais eu assumir que a minha verdade é a única que me interessa sobre determinado tema, assunto, pessoa ou evento, mais estarei honrando a verdade como um valor. Desde é claro que tal verdade não implique em prejuízo moral ou material a quem ou ao que quer que esteja sendo objeto de meu projeto.

Por tudo isso, acredito que essa discussão não existiria se alguém não tivesse tido a idéia de nomear essa arte de documentário. Não que este cinema esteja completamente descolado da realidade ou verdade, mas porque essas palavras têm uma força que tendem a constranger a arte. Arte é delírio canalizado e transformado em alguma competência. Acho que o cinema documentário deveria ir para o divã. Quem sabe ele não poderia definir melhor sua identidade em vez de ser chamado aqui e ali de docudrama, confundido com reportagens e o mais sombrio dos casos, de reality show? Quem sabe até mudar de nome.


São Paulo, 5 de julho de 2007.

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