domingo, 21 de dezembro de 2008

Análise de "Peões" de Eduardo Coutinho (Brasil, 1992)

O fato histórico do movimento sindicalista dos metalúrgicos do ABC paulista é amplamente conhecido, analisado e debatido há mais de 20 anos. Peões desenvolve a representação desse momento histórico brasileiro numa chave impressionista. Os personagens selecionados para o documentário são atores sociais coadjuvantes do episódio. Esses personagens pontuam no filme as motivações internas que inicialmente os trouxeram a São Paulo e as motivações externas que, posteriormente, os lançaram sem aviso prévio num tabuleiro de conflitos que culminaram na alteração das relações de poder de toda uma classe trabalhadora. As motivações iniciais resumem-se à busca de uma vida melhor em algum lugar distante daquele que não oferecia a perspectiva de uma vida digna devido às condições de pobreza e instrução dos personagens. O documentário começa dando voz ao indivíduo anônimo, dos bastidores e aos que desempenharam funções triviais e aparentemente sem importância estratégica para o movimento reivindicatório.
Com esse olhar descondicionado, o filme oferece um retrato multidimensional do migrante nordestino livre dos esteriótipos recorrentes nos meios de comunicação de massa. Em programas humorísticos, por exemplo, é comum retratar esse trabalhador por recortes comportamentais caricatos e reducionistas como o machismo, a subserviência e a predisposição festiva. Traços que foram inscritos no imaginário da sociedade ao longo de décadas por personagens históricos ou ficcionais como Lampião ou Didi, por exemplo. O filme derruba esses esteriótipos,
mostrando homens que choram pela lembrança da esposa falecida e das dificuldades por que passaram. Revela mulheres combativas como o caso de Luíza que arremessou uma pedra no marido por este querer furar a greve.
A publicidade representa o nordestino migrante num registro positivo, porém não menos plano, tomando a parte pelo todo. O trabalhador braçal costuma figurar nos comerciais sorridente e gesticulando um sinal de positivo geralmente atuando como um operário-padrão: frentista, manobrista, peão de obra ou, um pouco mais “elitizado”, adquirindo um crédito barato numa agência popular. O filme dá alma a esses rostos-sorrisos da publicidade ao iluminar suas reflexões sobre os efeitos de tarefas fabris que deixaram cicatrizes físicas provocadas pelo choque, pelo corte ou pelo fogo além da “dor na alma” pelo sentimento de incompetência por ter causado um acidente. Embora não contemporânea, a clássica imagem de Tempos Modernos em que Chaplin sai pela rua mimetizando o movimento de aperto de parafusos na linha de montagem encontra sua correspondente documental no plano da personagem Conceição relatando os efeitos do trabalho repetitivo na linha de montagem do chicote. Comenta que repetia os movimentos espontâneos dos braços durante os sonhos. Curioso o depoimento de um dos últimos personagens que ao contrário da maioria, sonhava grande ao querer juntar dinheiro para montar o próprio negócio e não apenas garantir uma vida tranqüila ao se aposentar. Essa é mais uma característica do registro refinado e da diversidade capturada pelo filme que ajuda a desconstruir a percepção dos migrantes em geral, e dos metalúrgicos do ABC em particular, como um bloco feito de iguais.
Um preconceito comum ligado a uma suposta preguiça também é reforçado por figuras icônicas da Bahia como Dorival Caymi. Aqui o folclórico se transforma em preconceito e ainda tenta ser “explicado” por um determinismo geo-climático que levaria a uma baixa produtividade segundo os parâmetros dos centros urbanos industrializados. As novelas também contribuem para reforçar valores negativos associados à baixa instrução, alienação política e submissão dos nordestinos que vieram tentar a sorte nos grandes centros. Em 20 anos isso pouco mudou, pelo menos nas formas de representação da mídia de massa. Não que Peões seja uma ode ao migrante nordestino, longe disso, os depoimentos revelam muito mais ambigüidades na personalidade e motivações dos seus depoentes do que uma coerência ou uma percepção diametralmente oposta às representações citadas.
O documentário estaria datado e pouco útil para uma análise social se as personagens e as imagens do filme não estivessem unidas por um fio condutor narrativo que reacende o interesse por um tema em certa medida desgastado. Os personagens do documentário atraem por apresentar seus relatos num registro nostálgico, revelando as suas impressões diante (e principalmente distante) do fato histórico do qual participaram. E ao costurar esses relatos com imagens de arquivo daquele que figura como o líder, o orientador, o pai, o guia dos personagens-liderados, o filme rompe com um modo de representação que simplesmente reconstitui e ilustra um evento para ganhar valor atemporal, pois toca num elemento do inconsciente coletivo importante do país. Talvez esse seja o ponto de contato mais aderente com o universo social mais amplo que o retratado pelo filme: a esperança de surgimento de um salvador da pátria. A idéia de que alguém deva resolver nossos problemas surge a todo instante e em toda parte, do voto para presidente à eleição do síndico do prédio. O baixo engajamento político é transversal a todas as classes sociais. Os personagens de Peões quando se vêem confrontados com a dura realidade de uma trabalho insalubre e perigoso, dão-se por satisfeitos em terceirizar a resposta àquela situação, entregando seu destino ao líder que se apresenta. Fora do filme e dentro da sociedade, isso se reproduz, voltando ao exemplo do síndico, nas assembléias de condomínios residenciais, onde é facilmente constatável a baixíssima presença dos moradores bem como a disposição em discutir questões de interesse comum. Mas o filme vai além e extrapola esse registro que bem caberia no enredo de uma novela. Os personagens do filme localizam claramente os méritos e a admiração ao quase-presidente. Ao declarar que “Lula e não o PT é que está chegando à presidência” ou que “se ele não fizer o que tem de fazer aí vai ter pau” os personagens se mostram lúcidos e críticos a ponto de se supor que tal adesão já não se daria no presente como se deu no passado de maneira tão absoluta. A ideologia ainda está intacta, mas a personificação da mesma soa abalada no filme.
A visualidade do movimento sindical parece ter contribuído para amplificar o valor do seu líder com uma repercussão que alcança relevância nacional mesmo com os resultados de sua ação limitados a uma única classe, a uma única cidade. Os peões de obras, por exemplo, são contemporâneos e compartilharam dos mesmos riscos e condições de trabalho que os peões de fábrica, mas não construíram a mesma mobilização. Talvez por falta de uma liderança? Ou pela ausência de uma concentração geográfica que facilitasse a mobilização massiva como ocorreu no ABC?
A imagem de Lula incitando os companheiros ou proferindo discursos cumpre papéis distintos dependendo do contexto. Originalmente, as imagens talvez tenham ajudado a criar uma aura para o líder que retroalimentava seu poder mobilizador. Imagens em filme ou vídeo eram caras de se produzir e raras de se acessar e se ainda eram procuradas pela polícia, seu valor se tornava inestimável. A cena do filme em que Zélia que era servente do sindicato indica que se sente participante daquela história por ter fugido com o filme “Linha de Montagem” poderia ser considerada uma síntese do documentário. A personagem correu sérios riscos para proteger o filme e “os meninos”, embora nunca tenha assistido ao filme. Filme esse que está sendo utilizado no próprio filme em que Zélia é uma personagem. Esse evento demonstra o poder de testemunho, de prova ou de documento daquele registro imagético naquele contexto original. O significado das mesmas imagens de Lula discursando na montagem final de Peões altera-se completamente. Vinte anos depois, pessoas de origem semelhante que compartilharam experiências semelhantes chegaram a destinos diferentes. O filme mostra os liderados orgulhosos de terem feito parte de um evento histórico, de terem sacrificado suas vidas pessoais como pai e mãe, terem colocado em risco sua integridade física e suas liberdades individuais sem arrependimentos. Demonstram também que as conquistas materiais foram menores do que o esperado, mas bem maiores do que se tivessem permanecido em suas bases. A trajetória do líder mostrada pelas imagens sugere uma transformação na direção oposta. As primeiras imagens dão conta de um personagem mais parecido com seus liderados tanto no gestual quanto em outros aspectos, mas ao final o apresentam com uma aparência que remete menos ao companheiro de luta e mais ao diretor da fábrica.
O filme trata, portanto, de deslocamentos. Deslocamentos de espaços, de trabalho, de profissão, de vida a que todos e não só os peões do filme estamos sujeitos na sociedade contemporânea. Geraldo, o último a depor, parece intuir essa idéia ao indagar se o diretor do documentário já foi peão. Hoje São Paulo não é mais o centro de atração dos migrantes nordestinos. É apenas um local de passagem, de oportunidades pontuais. As fábricas é que migraram para perto da mão-de-obra barata como conseqüência da descentralização industrial.
Se o documentário fosse produzido hoje, acredito que aquelas mesmas pessoas teriam suas impressões e memórias afetadas pela reeleição de Lula em alguma medida, mesmo que estimuladas pelas mesmas perguntas. Isso alteraria também
o significado daquelas imagens de arquivo. Em que sentido? Para que direção? Só realizando o documentário para saber.



São Paulo, 19 de janeiro de 2007

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